Treinadas para matar

 Ao invadir o corpo humano, o HIV, vírus causador da Aids, usa algumas das próprias células do sistema imune do infectado, conhecidas como T-CD4, para se reproduzir e tomar o organismo de assalto. Mas, tal qual um cauteloso general, ele mantém algumas destas células inativas, construindo uma reserva oculta de novos recrutas. Assim, mesmo que perca a batalha contr a o exército formado pelas células T-assassinas do sistema imune, reforçado pelos coquetéis de drogas antirretrovirais usados no combate à doença, hoje capazes de erradicá-lo de tal forma que ele se torna praticamente indetectável, a guerra não estará perdida. Caso os remédios sejam retirados, as células inativas são prontamente convocadas, passando a replicar o vírus e retomando a invasão.

Conhecidos como reservatórios latentes de HIV, estes vírus escondidos são atualmente um dos maiores obstáculos na busca por uma cura definitiva da Aids. Diante disso, nos últimos anos os cientistas têm procurado maneiras de fazer com que eles sejam ativados artificialmente. A ideia por trás da estratégia é expor os vírus latentes — e as células onde estão abrigados — à ação dos remédios e do sistema imune, destruindo os reservatórios. Experimentos recentes, no entanto, mostraram que só forçar a ativação das reservas não é suficiente. Agora, porém, um novo estudo publicado na edição desta semana da revista “Nature” identificou o porquê disso e indicou uma estratégia que pode libertar os soropositivos da obrigação de tomar os coquetéis antirretrovirais indefinidamente ou mesmo até levar finalmente à erradicação do HIV em seus organismos.

ESTUDO FOI FEITO COM CÉLULAS HUMANAS

No estudo, pesquisadores das universidades Johns Hopkins e de Yale, nos EUA, analisaram amostras do DNA das células T-CD4 infectadas pelo HIV e inativas de 25 pacientes, dos quais dez começaram a terapia antirretroviral menos de três meses depois de contraírem o vírus e os 15 restantes só após este período. Com isso, eles primeiro descobriram que, nas pessoas que iniciaram o tratamento logo, havia poucas mutações nos genes do vírus integrados ao DNA das células para criar estruturas chamadas “provírus”, que as instruem a se tornarem verdadeiras fábricas de HIV se ativas. Já nas que só começaram a tomar os remédios depois, estas mutações eram tão numerosas que tanto as células late ntes quanto os v írus que elas produzem se ativadas poderiam continuar a escapar da detecção pelo sistema imune.

— Nossos resultados sugerem que tirar o HIV de seu esconderijo é vencer apenas metade da batalha — explica Robert Siliciano, professor da Universidade Johns Hopkins e líder da pequisa. — Descobrimos que estes reservatórios de vírus latentes carregam mutações que tornam o HIV invisível para as próprias células do sistema imune capazes de matá-lo, então, mesmo quando sai do esconderijo, ele continua a escapar da detecção.

A análise, no entanto, também revelou que, mesmo com tantas mutações do HIV, o DNA das células reservatório infectadas mantém intactas algumas proteínas do vírus original. Isso levou os pesquisadores a testar uma possível solução para este problema de reconhecimento pelas células T-assassinas do sistema imune, tal como uma pequena falha na camuflagem revela o alvo a um atirador de elite.

— Imaginamos que, se as células T-assassinas forem treinadas para identificar estes pequenos segmentos inalterados do vírus, elas matariam as células infectadas — conta Kai Deng, pesquisador na Universidade Johns Hopkins e primeiro autor do artigo na “Nature”.

Para isso, os cientistas primeiro isolaram células T-assassinas dos pacientes e as expuseram ou às várias formas mutantes do HIV que os infectava ou a uma mistura contendo proteínas alteradas ou não do vírus. Alguns dias depois, estas células assassinas foram colocadas junto com células reservatório do vírus dos próprios pacientes contendo as mutações, obtendo uma resposta imune vigorosa principalmente no segundo caso, com as células assassinas matando 61% das infectadas.

Mas para saber se a estratégia também funcionaria em seres vivos, eles também recorreram a camundongos “humanizados”, ou seja, alterados genética e fisiologicamente para que seus sistemas imunes replicassem os dos pacientes do estudo. Os animais foram infectados com as linhagens dos vírus que afetavam cada um dos seus correspondentes pacientes, desenvolvendo a Aids. Então, eles receberam ou as células Tassassinas treinadas só com as variações mutantes do vírus ou com a mistura de proteínas alteradas ou não. No primeiro caso, eles continuaram a sucumbir à infecção, mas, no segundo, a carga viral chegou a cair a ponto do HIV não poder mais ser detectado.

— A comunidade científica já tinha indícios de que para eliminar os reservatórios de vírus latentes e curar a infecção pelo HIV só o coquetel antirretroviral não era suficiente e que era preciso contar também com a atuação do sistema imune — comenta Amilcar Tanuri, chefe do Laboratório de Virologia Molecular da UFRJ que também pesquisa estratégias para atrair o HIV para fora de seus esconderijos no corpo dos infectados. — Com esta pesquisa, eles mostraram que há, sim, chance de controlar os vírus que estão saindo dos reservatórios.

ESTRATÉGIA TRIPLA CONTRA O HIV

Segundo Tanuri, as descobertas abrem caminho para a adoção de uma estratégia tripla que pode, teoricamente, levar à erradicação total do HIV do organismo ou, pelo menos, fazer com que os portadores se transformem, ainda que temporariamente, nos chamadas “controladores de elite”, o raro grupo pessoas que mesmo infectadas pelo vírus nunca desenvolvem a Aids. Nesta abordagem, os coquetéis primeiro seriam usados para suprimir a replicação do HIV e reduzir a carga viral ao mínimo possível. Depois, os reservatórios latentes seriam ativados ao mesmo tempo em que elas recebessem vacinas ou outras intervenções capazes de estimular e treinar suas células Tassassinas a atacar os novos recrutas e suas bases de replicação.

Fonte: O Globo